Declarado patrimônio imaterial, o dialeto é parte essencial da cultura de Piracicaba
Piracicaba completou no último dia 1º de agosto, 254 anos de sua fundação. Neste significativo período de existência, passou por inúmeras mudanças em todos os aspectos: político, econômico, social, cultural e urbanístico e fez com que seu povo pudesse empunhar, com muito orgulho, a sua trajetória, tal qual uma bandeira que precisa ser vista por todos. Mas, afinal, o que define um povo? É certo que o sobressalto de muitas de suas características mais marcantes são essenciais para isto. Suas criações de cunho artístico, esportivo e científico, de maneira sistematizada, por exemplo, geram, ao longo do tempo, tradições, que acabam por delinear e estabelecer a história de todo um grupo de pessoas. Isto também acontece com a linguagem. E Piracicaba e toda a região do Médio Tietê pode se orgulhar de ter produzido todo um modo de falar específico, que atravessou, no mínimo, os últimos dois séculos e continua presente até os dias atuais.
O dialeto caipiracicabano, como é chamado, é resultado do encontro entre o português e as diversas línguas da família tupi-guarani, que acabou por originar a chamada “língua geral paulista”, que, no tempo colonial, tornou-se o idioma mais falado na porção sul do Brasil, sendo que, em muitos casos, havia-se, inclusive, a necessidade de um intérprete entre a autoridade portuguesa e a população, em virtude da dificuldade de interação linguística. No final do século 18, a coroa portuguesa, sob a gestão de Sebastião José de Carvalho e Melo, o Marquês de Pombal, proibiu o seu uso, punindo severamente quem a utilizasse, e impondo, em definitivo, o uso do idioma português no Brasil. No entanto, a língua geral paulista (também conhecida como “língua geral meridional”) só veio a desaparecer, totalmente, no início do século passado.
De acordo com o jornalista e escritor Cecílio Elias Netto, autor do livro “Dicionário do Dialeto Caipiracicabano – Arco, Tarco e Verva”, o modo caipira de falar começa na capital paulista. Ele explica ainda que a nossa maneira de se exprimir, além de ser o encontro do linguajar do indígena com o do português, que desceu os rios Tietê e Piracicaba, também tem influência direta do fato de Piracicaba ser o que se chamava, no auge do período ferroviário no Brasil, de “fim de linha”.
“A Companhia Paulista de Estradas de Ferro chegou à cidade e quis construir, no salto que a banha, uma usina hidrelétrica, porém, a câmara municipal barrou o projeto. Dado isso, a empresa modificou o trajeto da linha férrea e realizou um novo traçado a fim de alcançar Bauru, o que acabou por isolar Piracicaba de outras influências linguísticas. Apesar de ilhada, e talvez até por isso mesmo, a cidade criou uma cultura muito própria e, consequentemente, um linguajar próprio também. No entanto, a cidade não deixou de ser importante como centro político, inclusive, legando o primeiro presidente civil da história do Brasil, que foi Prudente de Morais”, explica Elias Netto.
Dialeto caipira
Tido como um dos dezesseis dialetos existentes no Brasil, o caipira é falado no interior de São Paulo, leste e sul do Mato Grosso do Sul, sul de Minas Gerais, sul de Goiás, norte do Paraná e zonas rurais do sul do Rio de Janeiro. A sua delimitação e caracterização datam de 1920, com a publicação da obra “O Dialeto Caipira”, do poeta, folclorista, filólogo e ensaísta Amadeu Amaral.
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O subdialeto da região do Médio Tietê, que abrange municípios como Americana, Araraquara, Campinas, Capivari, Itu, Jaú, Limeira, Piracicaba, Porto Feliz, Rio Claro, Santa Bárbara d’Oeste e São Carlos tem como algumas de suas características o chamado erre retroflexo (também conhecido como “r” caipira), inclusive em início de sílaba, tal como em “caro” ou “parada”, e em dígrafos, tal como em “frente” ou “crente” e a frequente iotização do “lh”, tal como em muié, ao invés de mulher.
Origem do termo “caipiracicabano”
Sobre a origem do termo “caipiracicabano”, em Piracicaba e municípios próximos, apesar de haver discussões no tocante ao surgimento da expressão, acredita-se que esta tenha sido criada pelo escritor, historiador e professor Thales de Andrade, atualmente aceito como o pioneiro do desenvolvimento do gênero literário infanto-juvenil no Brasil, porém, a divulgação em larga escala do “caipiracicabano” se deu através do jornalista, advogado, professor, político e folclorista João Chiarini. Seja lá como for, o vocábulo pegou e se tornou conhecido nacionalmente como designador do modo caipira de se expressar em nossa região.
Patrimônio imaterial
Em agosto de 2016, em meio às celebrações do aniversário de 250 anos de Piracicaba, o dialeto e o sotaque caipiras se tornaram, conjuntamente, patrimônio histórico, cultural e imaterial do município, após aprovação do Conselho de Defesa do Patrimônio Cultural de Piracicaba (CODEPAC). No entanto, para que isso acontecesse, foi fundamental o envolvimento de muitos piracicabanos preocupados com a preservação da cultura local, incluindo Elias Netto, que publicou, em 1988, o já citado dicionário que abriu caminho para que o povo em geral tivesse acesso sistematizado a termos que são referentes ao seu próprio modo de falar.
O jornalista lembra que “em 1987, eu fundei um semanário chamado ‘A Província’, com o objetivo de recuperar a memória de Piracicaba e divulgar a história do município e eu criei uma seção chamada “Arco, Tarco, Verva – O Refinado Dialeto Caipiracicabano”, para tratar do chamado ‘dialeto caipiracicabano’ e comecei a publicar algumas palavras e foi um grande sucesso, com os leitores me enviando novas expressões. A maior parte delas, inclusive, eu já conhecia desde os meus tempos de menino. Posteriormente, ao sair de Piracicaba, algumas pessoas que conversavam comigo, logo chegavam à conclusão de que eu era piracicabano por conta do meu modo de falar e eu achava isso incrível. Para muitas pessoas, aquilo podia ser feio e tal, mas eu via como parte da cultura da cidade. É uma identidade nossa. Essa linguagem do Médio Tietê é muito própria e Piracicaba é o centro dela, tendo um sotaque, inclusive, mais acentuado do que em outras localidades. Dado isso, depois de um tempo do início da publicação da coluna, algumas pessoas começaram a me sugerir que eu desenvolvesse uma obra a respeito do assunto e foi o que eu fiz. Para a minha surpresa, em duas semanas, o livro esgotou. Dois mil exemplares. Atualmente, o dicionário já está na sexta edição e a cidade assumiu o seu linguajar. A televisão também começou a divulgar bastante as tradições caipiras e hoje podemos dizer com orgulho que o nosso modo de falar é um patrimônio imaterial de Piracicaba. O escritor russo Leon Tolstói já dizia: ‘Se queres ser universal, começa por pintar a tua aldeia’. É isso o que eu estou sempre buscando fazer”.
Curiosidade (para ser diagramado a parte)
Segundo o jornalista e escritor Cecílio Elias Netto, caipira provém do termo tupi-guarani kaai’pira, onde kaa significa mato, i’ significa água e pira significa peixe, ou seja, “aquele que vive no mato, à beira do rio, comendo peixe”.
Termos do dialeto caipiracicabano e seus significados (para ser diagramado a parte)
Proseia – conversa
Lonjura – distância
Absurdado – espantado
Pagá a língua – ser punido pelo que disse
Queimá paia – conversa fiada, à toa, sem relevância
Põe reparo – observa
Tisorá – falar mal
Apeá – ir
Negadinha – grupo de pessoas
Bardeá – transportar de um lugar para outro
Cardo com massa – sopa
Cascá o bico – rir muito
Réiva – raiva
Arco – álcool
Tarco – talco
Verva – loção pós-barba (de Aqua Velva)
Mió du boi – carne bovina de qualidade
Enverga mai num quebra – resiste
Carque duro – realizar uma tarefa com vontade ou colocar com força
Arruinô – quando um ferimento infecciona
Trupicá – tropeçar
Um tirinho – rápido
Sarto – salto (queda d’água)
Fórfe – fósforo
Forfé – confusão
Carcule – pense direito
Reio – chicote
Traia – amontoado de objetos
Picá o trecho – ir embora por um caminho percorrido com frequência
Picá a mula – fugir em velocidade
Carçá butina – Precaver-se
Carcule só! – Expressão usada em qualquer manifestação de espanto ou surpresa
I pra caxa prego – Morrer
Muié – Mulher
Nêgo – Pessoa
Sua mãe, Catarina! – Uma grande ofensa, ainda que não se saiba a origem do termo.
Tomô que até roncô – derrota ou perda
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