Volte um pouco sua memória e você provavelmente vai lembrar que já se deparou com a seguinte sequência: uma frase que te fez parar para refletir e, ao término dela, a assinatura de Clarice Lispector. A famosa escritora – uma das maiores que o Brasil teve no século 20 – comemora o centenário em 2020.
A autora de frases profundas, que se tornaram fenômeno pop na internet, deu o grande passo para colocar a mulher como protagonista nas páginas dos livros. Além de forte nome na literatura, Clarice foi tradutora e jornalista.
Para ajudar você a entender melhor qual a importância da autora em dar voz feminina por meio das palavras, a Trinova conversou com Silvio Pereira da Silva, doutor em linguagem e educação pela Universidade de São Paulo (USP) e coordenador do curso de Letras da Universidade Metodista de São Paulo (Umesp).
Mulheres nos livros
Da primeira obra publicada até as crônicas que Clarice escrevia para os jornais, o dia a dia da mulher sempre inundava os textos. Antes, as mulheres e as adolescentes não se identificavam com as obras. “O processo de escrita dela trazia a compreensão da sensação dela mesma de como era ser mulher, como em relação à paixão e à interpretação da realidade”, diz Silva.
Exemplo disso está no romance “Uma Aprendizagem ou O Livro dos Prazeres”. Nele, Loreley, apelidada de Lóri, é uma mulher rica que opta por morar no Rio de Janeiro, onde trabalha como professora e passa a experimentar os sentidos da vida. Lóri conhece Ulisses, um professor de filosofia que a guia na jornada de aprender a amar e a ser quem ela é.
Só por curiosidade, Clarice, enquanto jornalista, chegou a assinar textos com o nome de Helena Palmer, no Correio da Manhã, do Rio de Janeiro, e como Teresa Quadros, na coluna “Entre Mulheres”, no Comício. Nesses conteúdos, a grande figura feminina da literatura brasileira dava dicas de beleza e sedução, ensinava receitas e aconselhava sobre como educar os filhos e ser uma boa esposa.
A autora também foi símbolo de empoderamento feminino na França, seguindo uma linha de outras escritoras francesas e inglesas e tendo um discurso revolucionário. Ela não lutava necessariamente pela igualdade de gênero, e sim pela diferença que a mulher fazia no mundo. “Ela tem essa sensibilidade que faz com que a gente perceba a importância da mulher na sociedade”, explica o professor Silva.
O especialista acrescentou que a militância dela também foi marcada na participação de eventos políticos no Rio de Janeiro com outros artistas e escritores.
Linguagem revolucionária
Clarice abordava os desejos reprimidos da mulher de uma forma ímpar e reflexiva, muitas vezes nas entrelinhas e, em outros momentos, de um jeito bem direto. Mas, não parava aí o jeito peculiar que escritora tinha de colocar as palavras no papel.
Algumas características que ela implantou na literatura estão presentes até os dias de hoje, segundo o especialista em estudos literários. “Acho fundamental na Clarice a possibilidade de escrever sem ter que contar uma história. Os processos criativos e narrativos das obras dela vão além da narrativa”, analisa Silva.
A estética da escrita de Clarice faz com que a escritora seja um fenômeno. O professor da Umesp relaciona isso à forma como ela criava frases de efeito e o jeito que conseguia provocar o exercício da reflexão humana.
Quem foi Clarice?
Clarice nasceu na Ucrânia em 10 de dezembro de 1920 e chegou ao Brasil ainda bebê com os pais e com as duas irmãs, em Maceió, capital de Alagoas. Já após ter perdido a mãe, mudou-se aos 12 anos para o Rio de Janeiro com a família.
A jovem de palavras que tocam a alma fez faculdade de Direito e começou a trabalhar em jornais da capital fluminense, como redatora na Agência Nacional, jornalista no Diário da Noite e colunista no Correio da Manhã. Aos poucos, o dom pela literatura se tornava explícito.
Na época, o fato de ela ser mulher ganhava ainda mais importância, porque a literatura no Brasil ainda era protagonizada por escritores homens. O primeiro conto de Clarice, “Triunfo”, foi publicado quando ela tinha 19 anos.
Em 1944, casada como embaixador Maury Gurgel Valente, publicou o primeiro romance, “Perto do Coração Selvagem”, que já abordava a vida de personagens femininas. A partir de então começou a levar a escrita como vocação. Ela ganhou no ano seguinte, inclusive, o Prêmio Graça Aranha, da Academia Brasileira de Letras.
Dez anos depois, morando fora do Brasil e com outras obras escritas, Clarice publicou a versão em francês do romance “Perto do Coração Selvagem”. Em 1956, ela começou a escrever contos para serem publicados na Revista Senhor, hoje a IstoÉ.
Outros importantes livros foram publicados na década de 1960, logo após ela ter voltado para o Rio de Janeiro. Entre as obras, “Laços de Família”, primeiro livro que reunia contos. “Legião Urbana” e “A Paixão segundo G.H.” também marcaram o período e são algumas das publicações que ainda conquistam gerações. A autora, ainda, escrevia crônicas.
O casamento de Clarice durou 14 anos e, com o embaixador, teve dois filhos: Pedro e Paulo.
Em 1967, a artista sofreu ferimentos graves durante um incêndio na casa dela, provocado por um cigarro. Ela ficou hospitalizada por meses e quase teve de amputar a mão direita. A carreira na literatura continuava com fôlego total.
A última obra dela foi publicada em 1977. Trata-se do romance “A Hora da Estrela”, adaptado mais tarde para o Cinema.
Responsável por dar vida a obras que relatavam o dia a dia e que mergulhavam no universo infantil, Clarice morreu vítima de um câncer de ovário, também em 1977, na véspera de aniversário de 57 anos.
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