Crônica Antonio Lavareda: ‘De volta para o futuro’

por | 31 mar, 2020 | 0 Comentários

 

Sabe um desses momentos imperdíveis que vez por outra a velha plataforma TV nos oferece? No dia 21/07, durante três horas e meia a partir das nove da noite, quem sintonizou o BandNews assistiu a algo imperdível: a reprise do primeiro debate de presidenciáveis na televisão brasileira de 1989, realizado na emissora aberta do grupo.
Era um 17 de julho e a disputa apenas começava. A primeira eleição presidencial desde 1960. E a única eleição solteira, sem disputa de outros cargos, que já houve em todo o pós-guerra.
Seriam quatro meses de movimentação frenética dos candidatos pelo país e muito tempo de televisão e de rádio, fazendo as campanhas atuais parecerem obras do “the flash” – tão rápidas, tão curtas.

Lá fora, mudanças vertiginosas. O muro de Berlim iria por terra em poucos meses e a União Soviética cambaleava derrotada economicamente na guerra fria, o que levou Fukuyama a se apressar decretando o “fim da história”. Aqui, o país encerrara os trabalhos da constituinte no ano anterior. O governo de transição que o acaso reservou ao presidente Sarney se ultimava mergulhado numa espiral inflacionária que provocava amplo descontentamento popular. E a carta recém promulgada aguardava um presidente ungido nas urnas para tirar do papel suas linhas ambiciosas de construção da nova república, onde perseguir o crescimento econômico e reduzir as desigualdades sociais e regionais se tornaram um dever do Estado.

Naquele debate, o marketing eleitoral ainda incipiente e a inexperiência dos participantes e dos organizadores produziram um espetáculo de espontaneidade e emoções à flor da pele, onde as regras ameaçavam mudar em pleno jogo. Os momentos de indisciplina extremada dos postulantes só eram refreados pela moderação charmosamente enérgica de Marília Gabriela, combinando senso de humor e capacidade de improvisação com a mais firme delicadeza. Um show à parte.

Na sequência de oito blocos, os nove personagens apresentaram sua visão do mundo e seu olhar sobre as mazelas do Brasil. Eram de fato poucas propostas específicas e muito mais dezenas de críticas que, vistas hoje em conjunto, podem ser percebidas como uma grande agenda da nossa democracia aberta diante das câmeras. Cada mandato presidencial subsequente teria oportunidade de destacar e contemplar um ou mais capítulos.
Foi assim que ficaram para trás o “combate à inflação”, que Mário Covas (PSDB) apontou como a primeira medida a ser tomada caso vitorioso; a “preservação da moeda”, destacada por Aureliano Chaves (PFL); “discutir a dívida externa”, como queria Lula (PT); decretar uma “moratória da dívida externa”, como propunha Roberto Freire (PCB); ou examinar “as perdas internacionais, responsáveis pela inflação, sintoma de um modelo econômico colonial”, como pregou Brizola (PDT). Fracassado o sequestro da poupança por Fernando Collor (PRN), o que abriria espaço ao seu impeachment, o Plano Real de FHC (PSDB), iniciado no governo Itamar e consolidado nos dois mandatos do seu autor, debelaria de vez a hiperinflação e organizaria as bases macroeconômicas do país. Depois, saldaríamos nossa dívida externa e até emprestaríamos dinheiro ao FMI.

A fome, a miséria e o analfabetismo de parte significativa dos então 140 milhões de brasileiros também desfilaram no debate. Era necessário “erradicar o analfabetismo de 20 milhões de brasileiros, com 2 bilhões de dólares investidos em cinco anos” apregoava Covas. Éramos um país com renda muito baixa onde 23 milhões de pessoas estavam na informalidade, “53% da população economicamente ativa” como lembrou Afif (PL). E no qual a percepção de crescimento da economia a partir dos anos 70 entrara em disjuntiva com a queda real dos salários e a fragilização especialmente da renda dos mais pobres. “É um escândalo. Precisamos recuperar os salários” praticamente gritava Brizola. Tempos depois, em sequência de governos e partidos, a universalização do acesso à escola, a estruturação dos programas sociais e a elevação em termos reais do salário mínimo viriam contemplar mais esse capítulo daquela agenda.

Foram muitos e muitos os temas suscitados. Problemas na saúde, educação, infraestrutura, agricultura e muito mais, com as características e dimensões que tinham naquele tempo. Porém um deles certamente chamou a atenção de quem assistiu à reprise – a apregoada necessidade do equilíbrio fiscal. Um capítulo que ainda se encontra inconcluso na agenda do país, com avanços e recuos igualmente notáveis. Várias intervenções no debate são absolutamente atuais. Receitas de bom senso que resistem à passagem dos anos, das décadas. Resgatá-las ajuda a olhar para a frente. Às vezes o novo não se confunde com a novidade.

Lembremos que esse é um tema mais caro à direita, aqui e no mundo. Por isso, natural que tenham partido da esquerda as discordâncias mais acaloradas. Brizola, Lula e Roberto Freire se contorciam cada vez que o argumento vinha à baila. Afif reclamou “um choque de austeridade e de moralidade” e mais uma “reforma administrativa e redução dos ministérios”. Maluf (PDS) atacou o “déficit fiscal, o déficit das estatais e o déficit previdenciário”. Caiado (PSD), o então presidente da UDR, nova entidade que congregava produtores do agronegócio, defendeu “resgatar a credibilidade política fazendo a reforma administrativa e enxugando a máquina perdulária do Estado”. Covas relançou um discurso seu propondo um “Choque de Capitalismo” contendo entre outras coisas “a desprivatização do Estado cartorial”. Teses que no frigir dos ovos traziam uma receita simples para os governantes traduzida de forma mais compreensível por Afonso Camargo (PTB): “ninguém pode gastar o dinheiro que não tem”. O candidato, engenheiro despido do mais leve vestígio de carisma, também pontificou em outro momento em que se polemizava sobre redução do déficit e inflação – “isso não é conservadorismo, é aritmética”.

Debate inesquecível para quem o assistiu à época, delicioso para quem o viu agora ou for vê-lo no site da emissora. Em um tempo onde a política também estava super desgastada, vale à pena por exemplo rever Mário Covas fitando a câmera e dizendo com seu jeitão verdadeiro: “Eu sou um político. E tenho profundo orgulho. É possível compatibilizar política com honra e dignidade”.

Ah, ia esquecendo que dois candidatos convidados faltaram ao debate – Ulisses Guimarães e Collor. O presidente da constituinte perdeu uma boa oportunidade de tentar mostrar porque o eleitor irritado com o estelionato eleitoral de 1986 ainda devia confiar no seu partido. Provavelmente apostava tudo na larga prevalência do seu tempo de propaganda na TV. Não deu certo. Não chegou aos cinco porcento. Quanto a Collor, optou por não comparecer a nenhum debate no primeiro turno, mas um olhar atento perceberá que sua temática estava lá. O esperto Maluf não perdeu oportunidade na ausência do líder nas pesquisas de criticar “as mordomias” e prometer demitir funcionários públicos ociosos acabando com as “nomeações de políticos”. Entusiasmado concluiu: “Você que é contra a inflação e contra a corrupção vote no Maluf”. Mas o eleitor preferiu o original. Collor venceu a eleição contra Lula no segundo turno. Maluf ficou em quinta colocação.

Esse debate que completou 30 anos comprova que o tempo, como disse Gilberto Freyre, é uma realidade tríbia, onde o presente se expande continuamente para trás incorporando o passado e para adiante antecipando o novo.

Antonio Lvareda é sociólogo e cientista político.

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