ARQUITETO CIRO PIRONDI DIZ ACREDITAR QUE GRANDES TRANSFORMAÇÕES URBANÍSTICAS DEVEM OCORRER NOS PRÓXIMOS ANOS E RESSALTA QUE RETOMAR O EQUILÍBRIO ECOLÓGICO É ESSENCIAL
Surgida entre quinze e dez mil anos atrás, quando do desenvolvimento da agricultura e da pecuária e da necessidade de troca e, posterior, compra e venda de produtos, a cidade, talvez, seja a maior invenção de toda a humanidade. Arraigada ao nosso modo de vida, mesmo para quem mora no campo, ela é necessária como centro de comercialização de víveres e afins e concentra uma série de serviços que em outros lugares não poderiam, de modo algum, serem prestados. Na atualidade, é parte fundamental daquilo que podemos chamar de sociedade.
Por isso mesmo, algumas perguntas se fazem tão importantes neste momento tão turbulento de nossa história: o que esperar do futuro de nossas cidades? Como a pandemia da Covid-19 poderá afetar o desenvolvimento econômico dos grandes centros? O que é necessário fazermos para que tenhamos aglomerações urbanas mais ecológicas, cujo lazer nos seja mais amplamente disponibilizado e não tenhamos de percorrer grandes distâncias entre nossas casas e nossos locais de trabalho? Essas e muitas outras perguntas foram respondidas pelo renomado arquiteto e urbanista Ciro Pirondi. Formado pela Universidade Braz Cubas, ele é um dos cofundadores da Escola da Cidade, uma das mais prestigiadas escolas de arquitetura do país. Comprometido com o desenvolvimento sustentável das cidades e com as questões sociais que permeiam o assunto, atualmente, é diretor da Fábrica-Escola de Humanidades João Filgueiras Lima, referência em ensino médio técnico na área arquitetônica. Confira a seguir este bate-papo sobre transformações urbanísticas, sociais e comportamentais e como podemos (e devemos) nos adaptar a elas, uma vez que, aparentemente, são incontornáveis.
TRINOVA — O senhor acredita na ocorrência de grandes transformações urbanísticas após o fim da pandemia do Novo Coronavírus? Se sim, quais devem ser as principais?
CIRO — Esta pandemia é, na verdade, uma grande dor que nós estamos sofrendo e após todo processo de dor, é natural que sejam geradas inúmeras reflexões. Em termos de urbanismo, muitas questões que já estavam no radar das mudanças a serem realizadas, agora devem ser colocadas em prática, pois nós não podemos continuar construindo cidades voltadas, simplesmente, para o transporte de mercadorias e a especulação imobiliária, e pagando tudo isso com o desmonte de nossas florestas, montanhas, rios e afins, então, inevitavelmente, esta pandemia há de nos fazer refletir sobre qual cidade nós queremos ter para o futuro. Uma das grandes discussões da área urbanística, recentemente aflorada, é a da necessidade de se constituir mais espaços públicos para a convivência da população, que foi algo deixado de lado até agora. Além disso, eu acredito, piamente, que as cidades tendem a refletir para o transporte de massa de qualidade e o incentivo ao uso de veículos não motorizados. As casas e a forma de viver e morar devem mudar também, porém, é preciso sempre lembrar que uma cidade só pode ser transformada através de três fatores: o primeiro é a vontade política de se impetrar mudanças; o segundo é a competência técnica para fazê-las, através de uma profunda integração entre todas as áreas da administração pública, para que estas não trabalhem isoladamente, uma em relação às outras, e de maneira esquizofrênica; e o terceiro é o envolvimento da população nos projetos a serem colocados em prática. Sem esses três fatores não é possível fazer nada. A grande verdade é que a boa arquitetura sempre foi e continuará sendo um trabalho multidisciplinar. O caso de Medellín, na Colômbia, é exemplar. Era a cidade mais violenta do mundo e, posteriormente, acabou sendo premiada pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) como uma das melhores cidades para se viver em toda a América, e isto partiu das inúmeras discussões realizadas entre o poder público e diversos setores da sociedade civil, que resultou em um bem-sucedido plano de grandes mudanças urbanísticas para a metrópole, ou seja, quando há vontade de todos, é possível de ser feito.
TRINOVA — A ampliação da oferta de transporte público é algo sempre colocado à mesa quando o assunto é deslocamento urbano de qualidade. Mas, como fazê-lo?
CIRO — Nós passamos esses últimos quase cem anos tendo os automóveis como protagonistas de nossas cidades. Eu acho que esta é a hora de invertermos este conceito. Os protagonistas a partir de agora devem ser as pessoas, a mobilidade que é realizada através do caminhar, do transporte não motorizado, que não polua, e do transporte coletivo de massa, pois, na atualidade, investimos muito pouco nestes modais. Se formos comparar São Paulo com a Cidade do México, esta última tem três vezes mais linhas de metrô do que a maior cidade do Brasil e ambas inauguraram os seus sistemas metropolitanos de transporte, mais ou menos, na mesma época. Agora é a hora de se investir nesta área, inclusive, para diminuir a aglomeração de pessoas, tão prejudicial em quaisquer momentos, não só nos de pandemia. Os meios de transporte hidroviários também têm de ser muito mais utilizados. Não há alternativas.
TRINOVA — Se fala muito agora no trabalho remoto. No entanto, é bem sabido que as casas (em sua maioria), ao contrário do que muitos dizem, não estão inteira ou parcialmente adaptadas ao home office. Como o senhor analisa esta questão?
CIRO — O trabalho remoto em si é desejável, mas não pode ser como qualquer coisa que excede a si própria, ou seja, quem pensa que isto agora irá resolver todos os nossos problemas, com certeza, está errado. Nossos problemas serão resolvidos quando encontrarmos harmonia entre os trabalhos remoto e presencial, pois, você pode até acabar com os problemas de tráfego nas cidades, mas a perda de contato é muito prejudicial às pessoas e a neurociência tem provado isso. Faz quase um ano e meio que estamos nesta situação de pandemia e as angústias e as aflições estão bastante afloradas. O contato com outras pessoas é parte da vida dos seres humanos e isto não pode ser ignorado. O afeto é a dimensão mais importante de nossas vidas. Não podemos transformar as nossas cidades em cidades-fantasmas. Isso seria algo horrível. Agora, têm pessoas que se adaptam melhor ao trabalho remoto e isso tem de ser levado em conta também. As empresas têm de se preparar para essas diferenças que existem entre seus colaboradores e não trabalharem com uma única possibilidade de emprego. Se fizerem isso, será o maior erro a ser cometido.
TRINOVA — E quanto às grandes distâncias existentes, atualmente, entre casa e trabalho. Como elas poderiam ser mitigadas?
CIRO — As grandes distâncias, infelizmente, irão continuar existindo, pois nós construímos cidades muito esparsas, extremamente não concentradas, e isto aconteceu por razões puramente ideológicas, principalmente, para afastar os pobres o máximo possível das regiões mais centralizadas. Quaisquer outros argumentos utilizados são, simplesmente, para disfarçar o que eu acabei de dizer.
TRINOVA — O saneamento básico é um dos maiores problemas enfrentados pelas cidades brasileiras. O que fazer para resolvê-lo e qual a razão de este ser um tópico tão complicado de ser equacionado?
CIRO — Primeiramente, todo mundo sabe que não é possível que uma cidade como São Paulo, por exemplo, a mais rica da América Latina, tenha mais da metade de sua população sem acesso a saneamento básico. Não há nenhuma justificativa, técnica ou econômica, para isso. Mas é preciso lembrar que as cidades latino-americanas foram criadas em um processo de colonização extremamente exploratório. Esta foi a base de tudo e nós continuamos reproduzindo isso, de maneiras mais sutis, mas continuamos, em especial, com a expulsão da população economicamente menos favorecida para as periferias, gerando anomalias, como a falta de saneamento básico em um país com um número gigantesco de recursos hídricos. A questão essencial é que nós temos de provar para a elite brasileira que com a implantação universal do saneamento básico haverá uma significativa economia na área de saúde e muito mais gente poderá consumir e produzir riquezas para o nosso país. Na atualidade, em todo o mundo, existe uma geração de pessoas, com muito poder e dinheiro, que começa a perceber que essa rota de colisão que se montou entre eles e os mais pobres não pode continuar e que é necessário, de alguma maneira, expandir os meios de produção da riqueza de maneira mais igualitária e eu creio que isto deve começar a acontecer muito em breve. Pelo menos, é o que eu percebo conversando com muita gente importante por aí.
TRINOVA — O Estatuto da Cidade estabelece o adensamento vertical como diretriz básica para uma melhor organização dos espaços urbanos. Qual é a sua opinião sobre este tópico?
CIRO — Bom, tem uma pesquisa que mostra que entre a Praça da Sé e o Largo de Santa Cecília, em São Paulo, existem quatrocentos mil metros quadrados de área abandonada, aí você divide isso por cinquenta, que é o tamanho médio de uma habitação social, e veja quantas residências poderiam estar sendo habitadas ali. Outro estudo mostra que no perímetro localizado entre as avenidas Faria Lima e Paulista, também em São Paulo, se deslocam, todos os dias, quase um milhão e setecentas mil pessoas, uma Barcelona inteira, então você pensa que é falta de inteligência, e não uma questão ideológica, continuar a especular com a não ocupação de prédios naquela área. O negócio não é fazer planos diretores, mas gestar a cidade de uma maneira política na dimensão humana dela. Adensar é oportuno e necessário. É preciso que se permita fazer prédios mais altos.
TRINOVA — No pós-pandemia, a constituição de novos espaços voltados às artes, aos esportes, à convivência social e à educação devem ganhar novo fôlego ou as expectativas sobre isso não devem ser tão elevadas?
CIRO — Eu acredito que as nossas expectativas para o pós-pandemia devem ser as mais elevadas possíveis. Nós criamos as cidades para produzirmos riqueza, tanto material, quanto espiritual, mas a que mais importa é a segunda, que é o esporte, o lazer, a cultura, a arte, e eu acredito que toda esta dor pela qual nós estamos passando irá nos fazer dar uma ênfase muito maior ao aspecto espiritual. É preciso sair da ignorância. Depois de uma grande dor, sempre vem uma nova avalanche de construção. Agora, esta evolução exige coragem, trabalho, dedicação, competência e gente que tenha vontade de construir e não só de colocar dinheiro no bolso.
TRINOVA — Fale um pouco sobre a Escola da Cidade e a Fábrica-Escola de Humanidades João Filgueiras Lima.
CIRO — A Escola da Cidade nasceu em maio de 1996, quando um grupo de nove arquitetos (também professores) entrou com um projeto no Ministério da Educação para a abertura de uma faculdade sem a finalidade de lucro, com o intuito de formar arquitetos e urbanistas com uma visão ética e crítica da sociedade, a fim de transformá-la através de seu ofício. Atualmente, é um projeto reconhecido no mundo inteiro, como uma experiência que deu certo, com convênios e contatos ao redor do planeta. Já, a Fábrica-Escola de Humanidades João Filgueiras Lima, surge como resultado destas mais de duas décadas de trabalho desenvolvido pela Escola da Cidade. O projeto, na sua essência, foi criado em cima de um sistema chamado FALEM (Filosofia, Arte, Literatura, Ecologia e Música), onde uma destas disciplinas é aplicada em um dia diferente da semana e são à base do ensino pedagógico da escola. Nós estamos realmente convencidos de que uma pessoa que tenha uma base educacional dessa ordem, no mínimo, será uma boa pessoa. Ao final do curso, o aluno obtém dois diplomas, sendo um deles o do ensino médio regular e o outro de Desenho da Construção em Madeira, Aço, Argamassa Armada e Fototipagem, fornecido pelo Centro Paula Souza (autarquia do governo paulista que administra escolas técnicas e faculdades de tecnologia). O Instituto Votorantim, por sua vez, comprou a ideia e nos ajudou a adquirir todo o maquinário com o qual os alunos trabalham e produzem uma série de artefatos, que são vendidos e financiam a escola e as bolsas que são entregues a eles. Na atualidade, 65% dos alunos da instituição contam com bolsas de estudo.
TRINOVA — Por fim, quais são as suas expectativas sobre o futuro das cidades, não só para o pós-pandemia, mas pelos séculos que irão se seguir?
CIRO — Eu vejo a cidade como o lugar do encontro, da troca material e espiritual. Esse é o futuro que eu espero, harmônico, onde ninguém precise morrer de fome, onde não haja mais solidão, que a gente consiga construir uma cidade mais solidária e extremamente generosa para com todos. Eu creio que nós iremos alcançar tudo isso muito antes do que pensamos, pois ninguém aguenta mais viver da maneira que vivemos hoje. Nós fizemos as nossas cidades à custa das florestas, rios, montanhas e afins e isto não pode continuar a acontecer, por isso mesmo, para alcançarmos tudo o que eu mencionei anteriormente, uma coisa é certa: nós teremos de retomar o equilíbrio com a natureza. Isto é inegociável.
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